sexta-feira, 6 de abril de 2012

Vir lutum



A fera diurna

Agora que as pupilas já tocadas
de pecado – que por quererem dela
a exata imagem, antes que a bela,
a terrível, que nisto o puro existe,
viram na fonte as águas desvendadas
não se impelirem mais que a um sono triste –
o que fora magia são corolas,
da presença da morte alucinadas
– agora, fera, em que mais te consolas?
De que disfarce íntimo se vale
a pedra contra ti? (nada resiste
à limpidez dos olhos sem amor).
Calaste o mundo e o mundo, sem que fale,
não te dará do tempo a flor da flor.

Caminhas entre o céu e o vale. E o vale
onde todo crescer obscuro e assomo
é cego caminhar às abstratas formas
da morte – ó formas exatas
e invioláveis! – fulgor que espera o pomo!
o vale é vale só e te dispensa.
Horizonte solidão, te desconhece
e anula. Estás só, homem sem gnomo!
que o resto é céu recurvo e diferença.

As sucessivas túnicas do dia
despiu, como se em pranto se negasse,
e em derredor de si rompera espelhos
deslizantes de som e cor, oh melodia
caindo sobre as flores nos vermelhos
e trágicos jardins! Mas eis que a face
da que diurna quer ser sendo noturna,
pela pureza própria corrompida,
se ergue inodora e vã – já morta nasce:
a beleza é mais frágil do que a vida.

Esperamos a morte sem defesa.
Lúcida espera, enquanto na diurna
cintilação, te esvais, cristal, estende-
se em silêncio e veludo, e se propaga
o musgo pelos muros da tristeza.
Curvam-se sobre nós astros e ramos
que esplendem. Soluçamos no que esplende:
o fruto, a rosa, a brisa que te apaga,
as árvores da música. Esperamos.

Talhados por mim mesmo no ante-sono
de mim, do barro erguera-me, escultura.
A luz de antes de ser dourava as formas
ignoradas de si, madurecia-as.
Até que enfim me soube ser o nono
Orfeu, boca madura, para as cousas
chamar pelo seu nome. Entanto, impura
boca, arvora lúcida, hoje não ousas
florir com tua voz as formas frias.
Adão, Adão, violaste a fonte pura.
Éden não houve, à margem do Pison
meditas. Estás só. Nada te esquece
que águas e nuvens passam. E a esse som,
teu coração – fruto último – emurchece.

Ferreira Gullar

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